Espiritualidade em tempos de performance: jovens místicos e o tecno neoliberalismo
- Paola Alarcon
- 9 de abr.
- 7 min de leitura
Atualizado: 30 de abr.
Estou escrevendo minha monografia sobre o fenômeno dos jovens místicos e, cada vez mais, percebo como esse resgate do sagrado tem sido também afetado pela lógica do mercado e da era digital.

Emergindo nos anos 1960, em meio ao movimento da contracultura, a espiritualidade da Nova Era surge como uma resposta às sombras das religiões dogmáticas, especialmente o cristianismo — marcado pela repressão do corpo, pela cultura da culpa, pelo medo do pecado e pela negação da experiência direta com o divino. Em contraste com doutrinas rígidas, essa nova espiritualidade propõe uma vivência centrada no “self sagrado”, onde a espiritualidade é vivida no corpo, no despertar da própria intuição e nas experiências cotidianas. Integra práticas e filosofias orientais como yoga e meditação, bem como outras vertentes do campo holístico como a astrologia e o tarot ou até o uso de enteógenos no intuito de promover autonomia espiritual e uma reconexão com o mistério, livre da mediação institucional.
Hoje, essas práticas tem sido popularizadas por uma juventude hiperconectada, ansiosa e em busca de sentido — um retrato expresso pelo fenômeno dos “jovens místicos”: jovens da geração Z, buscadores contemporâneos de transcendência e pertencimento, muitas vezes sem um lastro simbólico profundo, mas impulsionados por uma real sede de alma. Esse grupo ficou caracterizado por aparecer em videos e imagens nas redes midiáticas divulgando tais práticas e saberes, oferecendo cursos ou produtos correlatos à essa espiritualidade não dogmática e/ou também oferecendo seus serviços terapêuticos. As críticas que se tem a esse grupo, por seus haters, é o negacionismo da ciência, falta de consciência de classe e charlatanismo.
Byung-Chul Han, filósofo que tem se dedicado a pensar os efeitos da digitalização e do neoliberalismo sobre a subjetividade contemporânea, oferece uma lente importante para compreender esse contexto da divulgação e promoção da espiritualidade no meio digital dentro do tecno neoliberalismo. Para Han, vivemos não mais sob um regime disciplinar — como propunha Foucault — mas sob um regime de positividade, onde o sujeito já não é mais controlado de fora, mas se explora a si mesmo voluntariamente, em nome da liberdade, da produtividade e da autoexpressão.
No livro "A Sociedade do Cansaço", ele mostra como o indivíduo neoliberal é também um "empreendedor de si", constantemente se auto-otimizando, se vigiando e se expondo. Essa lógica se intensifica com o advento das redes sociais e da economia da atenção: cada ação, pensamento ou prática torna-se potencial conteúdo, passível de ser monetizado ou convertido em engajamento. Nesse sistema, até mesmo o sagrado, a espiritualidade e o autoconhecimento são cooptados e transformados em capital simbólico e mercadológico.
Seguindo essa lógica de distorção do real pelo interesse do capital, no livro Calibã e a Bruxa, de Silvia Federici, mostra-se como o nascimento do capitalismo envolveu uma violência profunda contra os corpos — especialmente o corpo feminino e coletivo, ligado à terra, ao cuidado e à intuição.
A caça às bruxas não foi só repressão religiosa: foi uma forma de quebrar o elo entre espiritualidade e comunidade, autonomia e saber corporal. O corpo foi separado da alma, a intuição da razão, o prazer do trabalho. O sagrado foi profanado — e depois virou mercadoria.
Hoje, esse mesmo sagrado reaparece. Só que domesticado, esterilizado, filtrado. A “bruxa” virou uma imagem vendável do suposto resgate ao sagrado feminino. O corpo da mulher volta a ganhar visibilidade mas dentro de uma lógica de prateleira. Podemos ampliar essa reflexão com a obra O Mito da Beleza, de Naomi Wolf. Nesse livro, Wolf argumenta que, à medida que as mulheres conquistaram avanços em direitos civis, profissionais e educacionais, a pressão estética se intensificou como uma nova forma de controle.
A “beleza” tornou-se um instrumento de poder — uma exigência velada que esgota, distrai e submete. Assim como no passado o corpo feminino foi disciplinado pelo medo e pela repressão, hoje ele é moldado pela indústria da imagem, pela cobrança constante de juventude, magreza e perfeição. Essa lógica mantém a dominação travestida de escolha, transformando o autocuidado em consumo e a liberdade em performance.
Mas, para além da estética corporal, o sagrado e a espiritualidade também foram capturados. A cura virou mentoria, a bruxa virou coach, e a busca interior se transformou em estratégia de marketing. A conexão virou engajamento, uma "comunidade" que tem potencial para entrar no funil de vendas. A espiritualidade virou performance — e muitas vezes se encaixa perfeitamente na lógica do “seja sua melhor versão”, não para você mesmo mas para os fiéis seguidores.
É nesse ponto que a psicologia junguiana oferece uma lente potente para refletir sobre esse fenômeno de constante atuação performática — seja na estética corporal, na espiritualidade ou na forma como apresentamos o próprio trabalho nas redes.
Jung falava da persona como a máscara que usamos para interagir com o mundo — um papel necessário para a adaptação social, mas que se torna perigoso quando passamos a nos identificar completamente com ele. E no caso dos jovens místicos, o risco é justamente esse: confundir o papel com o próprio conteúdo, performando suposta autenticidade enquanto se distancia da experiência real e encarnada de si, impedindo a existência da própria subjetividade.
Nas redes, essa persona espiritual — a bruxa intuitiva, a yogini espiritualizada, o curador holístico, o xamã — não é só uma imagem de si, mas algo que sintetiza um todo de um ser humano que vira um produto a ser consumido, suas práticas, seu estilo de vida, seus pensamentos (porque a vida privada vira pública para alimentar o algoritmo).... tudo precisa performar (melhor ainda se viralizar) dentro daquele papel tão bem criado (muitas vezes com a ajuda de profissionais), tendo quase que uma obrigação, assim como a questão dos corpos femininos, de se também obedecer à um padrão de estética e aparência, na lógica de se criar engajamento, seguidores, desejo e compra de serviços. É a espiritualidade convertida em branding de si.
Nesse cenário, é importante lançar um olhar crítico para o que emerge como charlatanismo: o uso indevido da linguagem espiritual, ancestral ou terapêutica como um meio de gerar lucro sem ética, responsabilidade ou formação adequada. O mercado da cura, em muitos casos, se tornou um terreno fértil para promessas vazias, soluções rápidas e gurus performáticos. Isso não surge apenas da má-fé, mas muitas vezes como uma distorção inconsciente da busca legítima pelo Self. Jung já alertava para os perigos da identificação com a imagem arquetípica do curador, do sábio, do mestre espiritual — figuras que, se não mediadas pela consciência, podem ser infladas pelo ego e projetadas como verdades absolutas.
A ilusão de estar "curado", "desperto" ou "iluminado" pode virar moeda simbólica e forma de poder, criando dinâmicas de dependência emocional, idealização e consumo. A projeção do Self, quando confundida com o eu egóico, gera não um encontro com o sagrado, mas um espetáculo da salvação.
E nesse palco, onde se vende de tudo — de oráculo a retiro — o risco é a espiritualidade deixar de ser caminho para se tornar produto, apagando a potência do processo real de transformação, que é lento, ambíguo e profundamente humano.
Nesse cenário, é fácil se perder no próprio personagem — não por malícia, mas por um desejo genuíno de pertencer, de viver com propósito, de se conectar com algo maior… tudo isso em meio a um sistema que embaralha referências: vida pessoal vira vitrine, trabalho se confunde com identidade. Quando a espiritualidade se torna performance e a validação depende de curtidas, engajamento ou relevância, o que sobra de sagrado, afinal?
Dessa forma, vamos alimentando a sombra: tudo aquilo que não se encaixa na imagem idealizada que projetamos — o que é ambíguo, doloroso, imperfeito — e acaba sendo empurrado para os bastidores da consciência.
A sombra, esse lado rejeitado por não combinar com a estética espiritualizada da persona a se sustentar, é silenciada porque não "vende bem", não gera engajamento ou parece destoar da coerência que se espera de quem vive “em busca de luz”.
Mas é justamente a sombra que guarda o potencial de transformação e mais, nossa verdadeira autenticidade. Faz de nós quem somos, seres humanos, pessoas possíveis, além do profissional, com vidas nada perfeitas. Sem a integração da sombra, a espiritualidade vira só mais uma ação performática no meio de tanto malabarismo que vemos nas redes sociais, uma promessa miraculosa de se ter uma vida mais próspera, ou de que resolveremos todos os nossos problemas a partir desse retiro, curso, vivência ou workshop de "saber ancestral".
Silvia Federici, nos lembra que o sagrado não pode ser separado da matéria, do corpo, do coletivo — ele pulsa na vida concreta, nas relações e nas estruturas que habitamos, não nas telas. Já Jung fala que não há totalidade sem a travessia pelo vale das sombras. A persona, para ele, é uma máscara social — necessária, sim, como forma de adaptação ao mundo externo — mas insuficiente quando esquecemos que também precisamos nos adaptar ao nosso mundo interno.
Quando a subjetividade é cindida por um sistema tecnoneoliberal que exige constante exposição, desempenho e coerência visual, acabamos perdendo o fio da nossa integridade. A aparência se sobrepõe à essência.
Talvez o maior paradoxo dos jovens místicos hoje seja justamente esse: ao buscar uma espiritualidade livre, fluida e desvinculada de instituições, acabam muitas vezes reproduzindo — e até reforçando — as mesmas estruturas de dominação, só que com outra estética. O verdadeiro encontro com o Self exige coragem para olhar o que foi exilado — as dores, os desejos ambíguos, os afetos rejeitados — e ir além, no silêncio, no escuro fértil do inconsciente, treinar uma escuta mais honesta sobre quem realmente somos e o que se sustenta a partir disso.
Portanto, não se trata de ironizar e negar a potência das práticas holísticas ou o valor das experiências subjetivas que elas podem proporcionar. Mas de reconhecer que estamos num campo tensionado, onde forças individuais e sistêmicas se misturam. Onde o desejo de cura se cruza com a lógica do capital. Onde a busca por autenticidade se choca com os imperativos de performance.
Nesse contexto, talvez a questão não seja simplesmente “ser verdadeiro” ou “voltar-se para dentro” na pegada da positividade tóxica, mas sustentar a contradição — olhar com honestidade para o emaranhamento entre espiritualidade e mercado, entre persona e sombra, entre liberdade e captura. Sem negar nem romantizar. Apenas suportar a ambiguidade do tempo em que vivemos e também de quem somos, por inteiro.
Ali, onde ninguém aplaude, compartilha, comenta ou dá like, que a alma pode, enfim, se desvelar. Assim, dentro do cenário contemporâneo, talvez o desafio maior seja resgatar uma espiritualidade que não seja domesticada, idealizada ou mercantilizada. Como faremos isso é algo individual, próprio da subjetividade de cada um, talvez um bom caminho para esse processo seja aprender a reconhecer e acolher os conteúdos que ninguém vê, mas que se expressam em sintomas, sonhos, repetições — tudo aquilo que a vida, com sua sabedoria inquieta, nos convida a atravessar.
Como dizia Jung, “não se alcança a iluminação imaginando figuras de luz, mas tornando consciente a escuridão”.


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